ILONA BASTOS |
CRÓNICAS E CONTOS |
UM ENCANTO DE CÃOZINHO ..
. Aquele cãozinho é felpudo como nenhum outro. O seu pelo é dourado e as orelhas são longas. Não gosta de se deixar pentear, porque quer reconhecer bem o objecto que lhe estão a passar pelo corpo. A escova é uma coisa estranha, com pauzinhos espetados. E por isso tem de ser cheirada devidamente. Aquele cãozinho é traquinas, e quando percebe que não está a ser observado rói tudo o que consegue alcançar. Levanta-se nas duas patas traseiras, estende muito o focinho esperto, alonga a patita em pequenas sapatadas e consegue apanhar mais uma colher de pau. Depois, zumba, zumba, é só roer a concha de um lado e do outro, até o utensílio ficar reduzido a um pedaço de madeira grande, rodeado de muitos outros pedacinhos de madeira, todos espalhados pelo chão da cozinha. Aquele cãozinho é doido por feijão verde. E fiambre. E frango! Mas também come papel. Vai buscá-lo a qualquer lado, e corre ligeiro para um lugar seguro, fora das vistas dos donos. Aí, põe-se a mastigar, como quem masca pastilha elástica. Ora vejam só! .Aquele cãozinho tem uma cauda pequenina, que não pára de abanar se o bichinho está feliz. Até parece um abanico, quando o cãozinho se levanta para saudar as visitas ansiadas ou para festejar a chegada dos donos regressados do trabalho. .Aquele cãozinho é um descobridor de meias. Fareja-as a léguas e não consegue resistir-lhes. Aproxima-se do cesto da roupa, abre-o com o focinho e faz o seu trabalho: por entre camisolas, calças e pijamas, detecta um delicioso par de peúgas azuis! E quem consegue alcançá-lo, quando se afasta, lépido, em passinho saltitante, com um brilho maroto no olhar? .E olha que aquele cãozinho é mimalho. Apanha o osso com destreza e, rápido, trepa para cima do sofá, invadindo o colo dos donos sem cerimónia. Encosta-se, segura o seu tesouro entre as patinhas, e põe-se a roer sofregamente, satisfeito com as festas e as palavras carinhosas que os donos não lhe regateiam. Mas se alguém o interpela, de fora, olha pelo canto do olho como só ele o faz, com o mimo e a prosápia de um cachorrinho sabido. .Ai cãozinho, cãozinho, quem resiste ao teu encanto! .. * Manuel Alegre, Cão Como Nós, Dom Quixote, 2002 . |
Home.... I ...Dados Biográficos... l ...Poemas... l ....Hai-kai.... l ...Contacto... l .. Crónicas |
Mais recente actualização: 10 de Novembro de 2004