CONTOS DE

ILONA BASTOS

 

CRÓNICAS E CONTOS
O PESADELO E A REALIDADE

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O começo do dia costuma ser tranquilo. É uma felicidade levantar a persiana, descobrir a gaiola do periquito, observar por um momento a sua penugem azul, abrir a janela, debruçar-me ligeiramente para lançar o olhar ao céu, e detê-lo, seguidamente, em pormenores, como o da verdura das copas ou o brilho dos edifícios e da calçada, lavados pelo amanhecer.

Costuma ser assim, mas hoje não foi. O aproximar da janela foi perturbado, o correr dos vidros receoso, e o espreitar foi o descarregar de um peso ainda maior sobre o meu peito.

Ao olhar, confirmei a imagem que se estampara no meu cérebro pela madrugada e que me impedira de descansar, povoando-me o sono de ilusões horríveis, sangue e traições.

Afinal, o horror da noite acontecera, não era fantasia induzida pelo filme visto antes de deitar (com uma trama absurda, personagens loucas e flashes insistentes de cães selvagens a rosnar e a ladrar pela neve e pela noite).

Fora real o barulho surdo mas forte que me acordara por volta das quatro da manhã. Fora real o ladrar altíssimo dos cães, numa agitação anómala, que me obrigou a correr para a janela, a levantar precipitadamente a persiana e a espreitar para a rua. Fora real a matilha, bem visível à luz do candeeiro exterior, que se debruçava sobre alguma coisa que não consegui identificar imediatamente, mas que depois reconheci como um gato.

Tudo se passou muito rapidamente: o ladrar, o ataque ao felino, o silêncio, o afastar-se a matilha do local, como que obedecendo à ordem de um líder. Um líder que não cheguei a perceber se era pessoa ou animal, uma vez que o grupo, de cerca de seis cães, depressa subiu uma escada, rente a um edifício, e desapareceu do meu ângulo de visão.

De boca aberta e coração apertado, não conseguia acreditar no que vira. Porém, melhor observando a rua, percebi que, não um, mas dois gatos aí se encontravam estirados, imóveis sobre o empedrado.

Fechei a janela, com os olhos rasos de lágrimas. Sentei-me no banco da cozinha, em choque, a fazer festas indiferentes ao cocker inocente que para mim se erguia, abanando a cauda e lambendo-me as mãos.

Acabei por me deitar, para me entregar agitado.

O nascer do sol, apesar de tudo, trouxe-me um raio de esperança. E se tudo não tivesse passado de um sonho mau? Levantei-me rapidamente, ansiosa, corri à janela e defrontei-me com a realidade: no céu, nuvens cor de chumbo, ameaçando chuva; na terra, os dois corpos dos gatos, sem vida.

Apática, deixei-me cair sobre o sofá, com a cabeça a latejar, sem compreender. Fiquei ali, estática, a desejar intensamente acordar do pesadelo da realidade para mais um dia de sonho.

Quando desci à rua, encontrei tudo limpo. Não vi gatos, nem cães, nem vestígios de luta ou de sangue. Atónita, segui o meu caminho.

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Lisboa, 16 de Agosto de 2004.

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Pintura de Goya

Mais recente actualização: 7 de Novembro de 2004