COR-DE-CHUMBO .Dulce
Sem precisar de se olhar no espelho compreendeu que
novamente devia ter o aspecto de uma pessoa abatida: a
tez baça e macilenta, os ombros fechados sobre o peito,
os olhos piscos - como quem não vê -, o pensamento sem
Norte.
Puxou de um papel amarelo, quadriculado, e começou a
escrever, em letrinhas tão minúsculas quanto o seu ego
- inversamente proporcionais à sua vontade de gritar,
bem alto, num desabafo universal. Se pudesse, pediria
emprestado um megafone gigante e passear-se-ia pelas ruas
como uma louca, berrando desesperadamente, libertando
fios e fios de lágrimas que não acalmam - como num
sonho ou num pesadelo.
Com esforço, simulou um ar natural e deitou a mão ao
telefone. Discou os números. Depois falou, combinou, em
voz calma, quase embargada, quase espontânea.
Mentalmente, pressentiu as fífias do seu discurso, mas
riu para esconder o sofrimento, e desligou.
Grande foi a ansiedade a tarde toda. Os minutos pareciam
não querer passar, nem no relógio, nem no ar, onde se
sentia uma dormência não habitual. E foi então que o
telefone tocou e voltou a requerer a sua atenção.
Quando pegou no auscultador sabia precisamente o que iria
ouvir: o desmentido da combinação anterior. É claro, o
encontro ficava sem efeito.
Ficou na mesma, como já estava, abatida: os dentes
cerrados, o espírito fechado, a mesma vontade de partir
para o mundo e gritar.
Alcançou a carteira e deslocou-se, a custo, até à
saída. Os passos pareciam andar para trás - exactamente
ao contrário do que faziam. A porta opôs-se, ao ser
aberta, e a solidão do corredor e dos ruídos do
elevador velho desabou sobre ela.
Descendo do sexto andar até ao rés-do-chão, sentiu-se
mais leve, momentaneamente. Já na rua, ao peso do seu
abatimento somou-se o do céu, cor-de-chumbo...
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