CONTOS DE

ILONA BASTOS

 

CRÓNICAS E CONTOS
APENAS A MÃE

.Joana


Sentada na cadeira, do outro lado da mesa, separavam-nos duas chávenas de café, uma pequena garrafa de água do Luso, que partilhávamos, e dois copos semi-cheios, dos quais beberricámos por vezes.

Depois de uma pausa, levantou para mim os seus olhos azuis, brilhantes, preocupados, e desabafou:

“Da outra vez não me custou tanto crescer!”

“Não?!”

“Não, de maneira nenhuma! Nada que se compare a esta angústia que me acorda de madrugada, a este medo que me impede de dormir durante a noite, a esta ansiedade que se tornou uma constante do meu dia-a-dia, recheando-o de mil sobressaltos e temores.

“Não, da outra vez, crescer, nesta idade, foi completamente diferente! Foi tão vivo, tão rico em experiências e novas sensações... Foi fantástico!

“Regressando ao passado, a esta exacta fase da minha vida, revejo-me numa garota da instrução primária, de cabelos revoltos, caracóis sempre despenteados, num colégio branco e imenso, de fundas escadas e salas repletas de carteiras, com um jardim, baloiços e até quartos escuros onde os "cinco" improvisados se embrenhavam em misteriosas aventuras ou bailavam, garridamente, ao som da música ié-ié tocada num gira-discos.

“Nestas imagens não encontro peso, nem receio, antes a leveza de umas pernas magras e desengonçadas, de meias curtas, e de um bibe azul sempre a rodopiar pelo ar. Visualizo acrobacias no escorrega, saltos dos baloiços, brincadeiras nos refeitórios, o jogo de antes do almoço percorrer o recreio com uma maçã equilibrada numa colher de sopa, correrias de jogos de polícias e ladrões que nos levavam a trepar aos mais altos ramos da figueira, a colher os seus frutos, que eram tesouros para nós, piratas, que os enterrávamos num canto secreto, escondido dos olhares das professoras.

“Lembro, especialmente, uma lição de catequese, lá em baixo, sentada de pernas cruzadas no chão da sala dos casacos, compenetrada da mensagem sussurrada que passava a uma amiga, a quem, clandestinamente, contava histórias sobre Jesus. Ah, e o jogo do mata, as pastilhas elásticas e aqueles chupa-chupas finos como lápis, de sabor a caramelo, embrulhados em papel às riscas azuis e vermelhas ...

“Tinha, nessa época, a sensação de ser alguém. Uma princesa poderosa reinando num país pequenino e azul cujas fronteiras se definiam junto ao muro branco encimado por rosinhas suaves e perfumadas, continuando com o jardim até à larga figueira de cabeleira despenteada, e culminando no portão grandioso, passagem única para as terras desconhecidas e temíveis do estrangeiro: um passeio imenso e branco (tão imenso e tão branco como o colégio e o muro que o rodeava), pelo qual nos atrevíamos a correr, ousadamente, em busca das pastilhas elásticas e dos chupa-chupas... Para além da calçada branca, rugiam os automóveis ferozes.

“Foi nessa altura que cresci, como terá de suceder agora. Foi nessa ocasião que passei da Primária para o Ciclo Preparatório.

“E, então, tão diferentemente da inquietação que hoje me invade, essa transição deu-se com suavidade, com velocidade e segurança: as mesmas que utilizava na descida, ágil, da escadaria, pairando sobre os degraus, deslizando a mão pelo corrimão, ou na forma como ganhava balanço e executava habilidades, de bicicleta, ou trepava ao muro, uns palmos acima da minha cabeça, e de lá me atirava, quase voando, para aterrar de pés juntos no chão do pátio, com incrível precisão.

“Durante as férias de Verão, tornei-me muito mais alta, e quando regressei a Lisboa apercebi-me, com surpresa, de que não mais precisava de saltar de cada vez que pretendia ligar ou desligar o interruptor da luz da casa de banho. Tinha crescido, e tudo, até o interruptor, estava ao meu alcance!

“Mudei, nesse ano, para a nova escola. E se no Colégio sentira Poder, na Escola Preparatória ganhara Liberdade.

“Consigo recordar tão bem esses tempos felizes, que as imagens de então me surgem nítidas como as de um filme imensamente colorido e luminoso, projectado no meu cérebro. Vejo-me com enorme clareza como uma rapariga desenvolta, em passe-montagne, a correr sob a chuva miudinha do Outono, os gestos livres e decididos, a linguagem liberta, capaz dos pequenos actos de indisciplina que proporcionam a revelação de um caminho inimaginado, aberto, amplo, livre: um gesto mais afoito que vale uma expulsão da sala de aula, aproveitada para retirar da máquina do corredor uma deliciosa mão-cheia de amendoins; uma sub-reptícia saída da área escolar, pelo buraco entre as sebes, para comprar tremoços ao vendedor ambulante; ou uma escapadela para acompanhar uma amiga à sua casa, a dois quarteirões dali, e trazer, escondida dentro do casaco de lã, a sua gatinha Kate, mimosa e assustada...

“E o corta-mato pelos caminhos ladeados de vegetação que rodeiam a Escola, sob a direcção exigente, mas simpática, da professora de ginástica! E o sentar no relvado, debaixo da janela da sala de aula onde uma jovem professora de religião e moral toca viola e canta, com as alunas, melodias de uma beleza ainda hoje inexcedível! E a primeira ida ao cinema desacompanhada dos pais, com a turma toda, em grupo, para assistir ao Homem-Orquestra de Louis de Funés com aquela outra professora de meia-idade que vive num lar de freiras! E a excursão a Fátima e às Grutas de Santo António, com paragem livre nas Caldas da Rainha e com cantigas, anedotas e gargalhadas sem fim nessa camioneta que nos leva para a Felicidade...”

“Céus! Tantas, tantas recordações surgem, em catadupa, desse crescer que, na época, se revelou tão intenso, tão livre, tão feliz!”

Fez uma pausa e passou a mão, nervosamente, pela testa.

“Porquê? Porque me provoca agora esta angústia o passar do ambiente resguardado do Colégio do Primeiro Ciclo para a Escola do Segundo Ciclo? Porquê estas noites sem sono e estes dias em sobressalto? Porquê que, desta vez, é tão difícil crescer?”

Tornou a fitar-me com o seu olhar suplicante, que durante algum tempo vagueara, sonhador e exaltado, pelo cenário circundante, de mesas de café, cadeiras, balcões, empregados e clientes.

“Porquê que, desta vez, é tão difícil crescer?” insistiu.

Sorri com a benevolência cansada de quem já criou seis filhos e esgotou o leque das sensações inverosímeis que a maternidade importa. Pousei a minha mão sobre a sua mão trémula e respondi, simplesmente:

“Porque, agora, tu és mãe. Quem cresce é a tua filha. E, para ela, crescer vai ser tão vivo, tão rico em experiências e novas sensações, tão intenso, tão feliz e livre como foi para ti. Descansa!”

Ela parou, desconcertada, por momentos. E murmurou:

“Então, para ela vai ser fantástico?!...”

“Exactamente. Vai ser fantástico!”

Voltei-me para trás, ergui o braço e chamei o empregado.

“A conta, se faz favor!”

Quando a olhei de novo, parecia recompor-se da surpresa e o seu rosto mostrava-se aliviado, embora pensativo.

“Tens razão.” disse-me, quando nos despedimos, dando uma pequena gargalhada. “Que tolice! Eu sou apenas a mãe.”


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Pintura de Goya

Mais recente actualização: 6 de Setembro de 2005