APENAS A MÃE .Joana
Sentada na cadeira, do outro lado da mesa, separavam-nos
duas chávenas de café, uma pequena garrafa de água do
Luso, que partilhávamos, e dois copos semi-cheios, dos
quais beberricámos por vezes.
Depois de uma pausa, levantou para mim os seus olhos
azuis, brilhantes, preocupados, e desabafou:
Da outra vez não me custou tanto crescer!
Não?!
Não, de maneira nenhuma! Nada que se compare a
esta angústia que me acorda de madrugada, a este medo
que me impede de dormir durante a noite, a esta ansiedade
que se tornou uma constante do meu dia-a-dia, recheando-o
de mil sobressaltos e temores.
Não, da outra vez, crescer, nesta idade, foi
completamente diferente! Foi tão vivo, tão rico em
experiências e novas sensações... Foi fantástico!
Regressando ao passado, a esta exacta fase da minha
vida, revejo-me numa garota da instrução primária, de
cabelos revoltos, caracóis sempre despenteados, num
colégio branco e imenso, de fundas escadas e salas
repletas de carteiras, com um jardim, baloiços e até
quartos escuros onde os "cinco" improvisados se
embrenhavam em misteriosas aventuras ou bailavam,
garridamente, ao som da música ié-ié tocada num
gira-discos.
Nestas imagens não encontro peso, nem receio,
antes a leveza de umas pernas magras e desengonçadas, de
meias curtas, e de um bibe azul sempre a rodopiar pelo
ar. Visualizo acrobacias no escorrega, saltos dos
baloiços, brincadeiras nos refeitórios, o jogo de antes
do almoço percorrer o recreio com uma maçã equilibrada
numa colher de sopa, correrias de jogos de polícias e
ladrões que nos levavam a trepar aos mais altos ramos da
figueira, a colher os seus frutos, que eram tesouros para
nós, piratas, que os enterrávamos num canto secreto,
escondido dos olhares das professoras.
Lembro, especialmente, uma lição de catequese,
lá em baixo, sentada de pernas cruzadas no chão da sala
dos casacos, compenetrada da mensagem sussurrada que
passava a uma amiga, a quem, clandestinamente, contava
histórias sobre Jesus. Ah, e o jogo do mata, as
pastilhas elásticas e aqueles chupa-chupas finos como
lápis, de sabor a caramelo, embrulhados em papel às
riscas azuis e vermelhas ...
Tinha, nessa época, a sensação de ser alguém.
Uma princesa poderosa reinando num país pequenino e azul
cujas fronteiras se definiam junto ao muro branco
encimado por rosinhas suaves e perfumadas, continuando
com o jardim até à larga figueira de cabeleira
despenteada, e culminando no portão grandioso, passagem
única para as terras desconhecidas e temíveis do
estrangeiro: um passeio imenso e branco (tão imenso e
tão branco como o colégio e o muro que o rodeava), pelo
qual nos atrevíamos a correr, ousadamente, em busca das
pastilhas elásticas e dos chupa-chupas... Para além da
calçada branca, rugiam os automóveis ferozes.
Foi nessa altura que cresci, como terá de suceder
agora. Foi nessa ocasião que passei da Primária para o
Ciclo Preparatório.
E, então, tão diferentemente da inquietação que
hoje me invade, essa transição deu-se com suavidade,
com velocidade e segurança: as mesmas que utilizava na
descida, ágil, da escadaria, pairando sobre os degraus,
deslizando a mão pelo corrimão, ou na forma como
ganhava balanço e executava habilidades, de bicicleta,
ou trepava ao muro, uns palmos acima da minha cabeça, e
de lá me atirava, quase voando, para aterrar de pés
juntos no chão do pátio, com incrível precisão.
Durante as férias de Verão, tornei-me muito mais
alta, e quando regressei a Lisboa apercebi-me, com
surpresa, de que não mais precisava de saltar de cada
vez que pretendia ligar ou desligar o interruptor da luz
da casa de banho. Tinha crescido, e tudo, até o
interruptor, estava ao meu alcance!
Mudei, nesse ano, para a nova escola. E se no
Colégio sentira Poder, na Escola Preparatória ganhara
Liberdade.
Consigo recordar tão bem esses tempos felizes, que
as imagens de então me surgem nítidas como as de um
filme imensamente colorido e luminoso, projectado no meu
cérebro. Vejo-me com enorme clareza como uma rapariga
desenvolta, em passe-montagne, a correr sob a chuva
miudinha do Outono, os gestos livres e decididos, a
linguagem liberta, capaz dos pequenos actos de
indisciplina que proporcionam a revelação de um caminho
inimaginado, aberto, amplo, livre: um gesto mais afoito
que vale uma expulsão da sala de aula, aproveitada para
retirar da máquina do corredor uma deliciosa mão-cheia
de amendoins; uma sub-reptícia saída da área escolar,
pelo buraco entre as sebes, para comprar tremoços ao
vendedor ambulante; ou uma escapadela para acompanhar uma
amiga à sua casa, a dois quarteirões dali, e trazer,
escondida dentro do casaco de lã, a sua gatinha Kate,
mimosa e assustada...
E o corta-mato pelos caminhos ladeados de
vegetação que rodeiam a Escola, sob a direcção
exigente, mas simpática, da professora de ginástica! E
o sentar no relvado, debaixo da janela da sala de aula
onde uma jovem professora de religião e moral toca viola
e canta, com as alunas, melodias de uma beleza ainda hoje
inexcedível! E a primeira ida ao cinema desacompanhada
dos pais, com a turma toda, em grupo, para assistir ao
Homem-Orquestra de Louis de Funés com aquela outra
professora de meia-idade que vive num lar de freiras! E a
excursão a Fátima e às Grutas de Santo António, com
paragem livre nas Caldas da Rainha e com cantigas,
anedotas e gargalhadas sem fim nessa camioneta que nos
leva para a Felicidade...
Céus! Tantas, tantas recordações surgem, em
catadupa, desse crescer que, na época, se revelou tão
intenso, tão livre, tão feliz!
Fez uma pausa e passou a mão, nervosamente, pela testa.
Porquê? Porque me provoca agora esta angústia o
passar do ambiente resguardado do Colégio do Primeiro
Ciclo para a Escola do Segundo Ciclo? Porquê estas
noites sem sono e estes dias em sobressalto? Porquê que,
desta vez, é tão difícil crescer?
Tornou a fitar-me com o seu olhar suplicante, que durante
algum tempo vagueara, sonhador e exaltado, pelo cenário
circundante, de mesas de café, cadeiras, balcões,
empregados e clientes.
Porquê que, desta vez, é tão difícil
crescer? insistiu.
Sorri com a benevolência cansada de quem já criou seis
filhos e esgotou o leque das sensações inverosímeis
que a maternidade importa. Pousei a minha mão sobre a
sua mão trémula e respondi, simplesmente:
Porque, agora, tu és mãe. Quem cresce é a tua
filha. E, para ela, crescer vai ser tão vivo, tão rico
em experiências e novas sensações, tão intenso, tão
feliz e livre como foi para ti. Descansa!
Ela parou, desconcertada, por momentos. E murmurou:
Então, para ela vai ser fantástico?!...
Exactamente. Vai ser fantástico!
Voltei-me para trás, ergui o braço e chamei o
empregado.
A conta, se faz favor!
Quando a olhei de novo, parecia recompor-se da surpresa e
o seu rosto mostrava-se aliviado, embora pensativo.
Tens razão. disse-me, quando nos despedimos,
dando uma pequena gargalhada. Que tolice! Eu sou
apenas a mãe.
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