O
PRIMEIRO DIA
.
.Graça
Um mar de
processos cobria as secretárias, donde emergiam,
parecendo boiar à deriva, os monitores dos
computadores e as cabeças dos funcionários.
Uma vaga de
papel branco e cartolina azul suave galgara mesmo o
parapeito da janela, através da qual se avistava a
cidade, longínqua.
A senhora
simpática, de cabelo curto e óculos, levantou-se e
avançou, com deferência. Alheia aos sorrisos mal
disfarçados dos colegas, guiou-a através do
corredor, junto aos guichets,
ultrapassou o guarda-vento, atravessou o hall de
entrada, penetrou na zona reservada e, finalmente,
deteve-se junto à porta de um gabinete, que abriu.
*
Com um baixar de
cabeça agradeceu a delicadeza da senhora simpática,
de cabelo curto e óculos, que se inclinava, numa
vénia.
Bem-vinda,
Senhora Doutora! Este é o gabinete que lhe foi
atribuído. Agora volto para a secretaria... Se
desejar alguma coisa...
Obrigada.
Se precisar, eu aviso.
Em poucos
segundos desvaneceu-se a imagem da funcionária e do
corredor, apenas restando, em primeiro plano, a porta
de madeira escura, fechada.
Voltando-se, deu
alguns passos, progredindo em território estranho,
excessivamente ocupado.
Sobre o chão
frio, erguiam-se uma secretária, duas cadeiras, um
pequeno armário rectangular, uma mesinha de apoio e
inúmeras pilhas de processos com capa de cartolina
azul celeste.
Também pelos
móveis se apinhavam dossiers, livros, um telefone
empoeirado e mais montanhas de processos.
Pairava sobre o
relevo desordenado do aposento uma pesada camada de
ar, que lhe pareceu irrespirável porque também ela
impregnada de pó e, se possível, de papel, até ao
tecto alto e sujo, até ao candeeiro frio, de
lâmpadas fluorescentes, até às janelas subidas, de
armazém, encostadas ao tecto, não deixando entrar a
luz nem a brisa, mas tão somente a suspeita de uma
humidade insidiosa e de uma chuva persistente...
Aproximando-se
da cadeira da secretária, observou as paredes,
recobertas de azulejos verdes e brancos, semelhantes
aos das casas-de-banho. Estacando, de repente,
escutou os ruídos exteriores e pressentiu (mais do
que ouviu) o aclarar da garganta de um colega
vizinho, o circular dos automóveis no alcatrão
molhado e o tamborilar da chuva na calçada.
Na mesa de
apoio, afastou uma resma de papel, unida em maços
heterogénios por um cordel branco. Pousou a pasta.
Cuidadosamente, experimentou a cadeira, desconfiada
da sua robustez, pendurou a bolsa no encosto, e
sentou-se. Estendendo as mãos, pegou num processo, e
noutro, e num terceiro, e nos que corriam a seus
braços como crianças carentes. Soerguendo-se,
colocou-os de lado, deixando à vista o tampo riscado
e corroído da secretária.
Com súbito
entusiasmo, rodou a cadeira, ávida da pasta e da
caneta nela contida. Mas o choque com uma montanha de
processos fê-los tombar, precipitando-os em
estrondosa cascata que deslizou pelo chão.
Baixou-se para
recolocar os processos na pilha, ao mesmo tempo que
fazia balançar outros morros, de equilíbrio
evidentemente instável, existentes sobre a
secretária
Limpou, nas
calças novas, propositadamente compradas para
estrear nesse dia, as mãos já sujas de pó,
levantou-se com vigor, deu dois passos e tropeçou,
arrastando papel, cartolina e cordel branco pelos
mosaicos pouco limpos do gabinete.
Confusamente,
ouviu o telefone tocar. Com esforço, alcançou o
auscultador, que aproximou do ouvido, bruscamente.
Depressa, porém, a expressão do seu rosto se
suavizou.
Então,
querida, está a correr tudo bem?
Imprimiu à voz
o máximo de optimismo que conseguiu reunir dentro de
si:
Ah, sim.
Tudo bem!
E o
pessoal?
Ah, fui
muito bem recebida. Há uma funcionária
especialmente amável, que se mostrou muito
prestável e me trouxe ao gabinete...
Óptimo!
Viva o luxo!
" É...
Tenho uma
reunião agora. E depois outra, às cinco horas. Vais
buscar a Clara?
Claro!!!
Riu-se, aliviada
com o eco de gargalhada vindo do outro lado do
telefone. Era o seu (deles) trocadilho de serviço.
Apto a aliviar todas as tensões (mesmo as não
assumidas - especialmente as não assumidas).
Então,
até logo. E a continuação de um óptimo primeiro
dia de trabalho!
Obrigada.
Um dia feliz para ti, também. Beijos.
Desligou, mais
animada. Resolutamente, arregaçou as mangas. De
olhar semi-cerrado calculou, em primeiro lugar, como
arrumar os processos de forma a poder caminhar
livremente pelo gabinete.
Recordou-se, com
inveja, das amplas janelas da secretaria. Aí, pelo
menos, os parapeitos constituiam excelentes
prateleiras. No seu caso, nem dessa solução podia
socorrer-se, encontrando-se, como se encontrava, num
gabinete improvisado, que fora até há bem pouco
tempo a sala das testemunhas.
E para quê
janelas tão altas? - perguntou-se - Para as
testemunhas não fugirem, aterrorizadas com as vestes
negras e solenes dos magistrados, dos advogados e dos
escrivães? Ou, antes, para não se escapulirem
ardilosamente pela sanca exterior ao edifício e, em
equilibrismos Hollywoodescos, caminharem até às
vizinhas janelas da sala de audiências e, aí,
através de leitura labial, tomarem conhecimento do
depoimento das outras pessoas (testemunhas, peritos,
partes), o que lhes era absolutamente vedado?
Metodicamente,
começou a abraçar molhos de processos que
carregava, toda curvada, até junto das paredes,
agrupando-os, rente aos azulejos brancos e verdes,
verticalmente, em torres e arranha-céus oscilantes.
Os livros, alinhou-os ordenadamente em cima do
armário.
Este sistema
permitiu-lhe conquistar uma área considerável de
território. Agora, sim, podia deslocar-se entre a
secretária e as cadeiras, entre o armário e a porta
e a mesa do telefone, com certa ligeireza de
movimentos!
Pensou que um
pano do pó e uma planta tornariam o ambiente mais
agradável, e recordou-se da secretaria, onde havia
luz com abundância e uma tal profusão de vasos com
fetos, plantas da borracha e troncos da felicidade,
que mais parecia uma estufa ou um parque tropical.
Considerou que
as janelas também ajudavam - as plantas necessitam
de luz e de ar - e lamentou que as suas fossem tão
altas e inúteis.
Se as paredes
não estivessem recobertas de azulejos poderia trazer
uns quadros e decorar o gabinete. Sim, tinha lá em
casa uma reprodução de um Renoir que trouxera da
última viagem a Paris. Era magnífica,
evidentemente... mas não lhe parecia que condissesse
com os azulejos brancos e verdes!
Tomou, desta
vez, a iniciativa de ligar o telefone.
Atendeu
imediatamente a funcionária simpática, da
secretaria
Importa-se de cá chegar, se faz favor?
Com
certeza, é só um momento.
Meia-hora
depois, quando, já impaciente, se preparava para
tornar a telefonar, apareceu a escrivã, balbuciando
da entrada:
Peço
desculpa, senhora doutora, mas estou sozinha na
secretaria, apareceu um advogado para consultar um
processo e tive de o procurar...
Sim, tudo
bem.
Mudou de tom de
voz, procurando ser imperativa:
Diga-me
uma coisa: para organizar melhor o trabalho quero que
me indique quais destes processos aguardam despacho e
quais são os que podem ser imediatamente arquivados
na secretaria.
A resposta foi
imediata:
Estão
todos a aguardar despacho, senhora doutora.
Todos!
Bom, então quero que me diga quais são os mais
urgentes, para os classificar por ordem de
prioridades.
A informação
não poderia ser mais precisa:
Todos
estes processos estão para despacho urgente, senhora
doutora.
Mas os
mais urgentes...
São
todos muitíssimo urgentes!
A funcionária
simpática, de cabelo curto e óculos quedou-se junto
à porta, semi-aberta, em que se apoiava. O seu rosto
permanecia expectante, e mantinha-se impassível,
como anteriormente. Não se vislumbrava, agora, a
sombra de um sorriso. Mas também não se detectava
ironia ou sarcasmo na sua atitude. Informara,
simplesmente, como devia informar. Competentemente.
Por momentos,
aquela figura esguia e impávida tornou-se desfocada,
ténue, trémula, na visão da sua interlocutora,
sentada na cadeira, do lado de cá da secretária.
Uma vertigem
ensombrou-lhe o cenário de paredes de azulejo de
casa-de-banho e processos, dezenas de processos,
centenas de processos, às pilhas, em torres e
arranha-céus, aos montes e vales, em planaltos que a
cercavam, ameaçadores, de todos os lados.
Gradualmente,
tudo escureceu, e assim se manteve por escassos
segundos.
Depois, a
paisagem foi-se recompondo, readquirindo cor, e o
azul das capas de cartolina uma vez mais lhe recordou
o mar, ondeante mas suave, quase tranquilo, a
acariciar as margens esverdeadas, em cerâmica.
Quando voltou a
observar a funcionária, já os seus contornos
apareciam perfeitamente definidos, e as palavras,
emanadas da sua boca, revelavam-se espantosamente
claras:
Se a
senhora doutora o desejar, amanhã coloco-lhe sobre a
secretária os processos para despacho de mero
expediente, que são os mais rápidos, propôs.
Hoje não, que está na hora da saída. Mas
amanhã a senhora doutora depacha uns dez processos.
Depois de amanhã mais dez...
E os
outros...
A funcionária
permitiu-se sorrir, com genuína simpatia.
Os outros
estão cá há muito! São decisões difíceis e
resolvem-se com o tempo.
Sim...
Sentia empatia
no outro extremo do aposento, junto à entrada.
Se a
senhora doutora não precisar de mais nada, então,
saio.
Obrigada,
não preciso, não. Até amanhã.
Até
amanhã, senhora doutora.
Ao olhar para o
relógio percebeu que estava na hora de, também ela,
sair. Precisava de ir buscar a Clara, que acabava as
aulas às seis e meia, nesse dia.
Apanhou a bolsa
e a pasta, dirigiu-se à porta e, antes de apagar a
luz, ainda lançou um olhar sobre o minúsculo
gabinete que lhe fora atribuído. Sentia-se um pouco
atordoada, mas recuperava com surpreendente rapidez.
Já no corredor,
apercebeu-se de que, sem que o tivesse notado
(provavelmente o caso dera-se quando, afanosamente,
carregava processos de um lado para o outro do
gabinete) haviam colocado uma placa na sua porta.
Um colega, que
passava nesse momento, cumprimentou-a delicadamente,
e do outro extremo, além guarda-vento, a
funcionária simpática, levando no braço um enorme
guarda-chuva vermelho, saudou-a com respeito e
estima.
Ainda teve tempo
de reler as palavras escritas na pequena placa de
cobre, antes de alcançar o elevador:
Juíza
de Direito.
Ao impacto
inicial, seguiu-se uma sensação estranha,
indefinível: Seria orgulho? Felicidade? Medo?
Horror?
Pelo espírito
passou-lhe, fugaz, o traçado lugubre das janelas
estreitas, rentes ao tecto manchado de humidade, e
visualizou os estranhos esforços de equilíbrio de
um vulto absurdo que fugia pela sanca exterior do
edifício...
Mas afastou o
pensamento. Correu, sob a chuva forte, até ao
automóvel. Abriu a porta, sentou-se, atirou a pasta
e a bolsa para o banco traseiro, e apertou o cinto.
Não importava mais nada, agora. Tinha de se
apressar. A Clara estava à sua espera, sem
guarda-chuva, e com a pesada mochila às costas,
junto ao portão da escola.
Nessa noite, já
estava combinado com o João, iriam todos, incluindo
os pais e os irmãos, jantar fora, num restaurante de
luxo, para festejar a sua promoção e o primeiro dia
no exercício de funções.
Hip! Hip! Hurra!
..
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