....... Conduzida à sala
de paredes brancas e luminosas, aguardava-me do outro
extremo da mesa de reuniões um estranho grupo
composto por três homens. Aparentavam o aspecto
bizarro que eu não poderia ter deixado de antecipar:
o do meio - que me pareceu hierarquicamente superior
aos outros - exibia longas barbas negras e cabelo
comprido, atravessado no topo por uma larga e
reluzente careca; o da direita ostentava uma
esplêndida cabeleira loira, encaracolada; e o da
esquerda era completamente ruivo, numa tonalidade
eufórica, quase irreal. Em frente a cada um deles,
solenes placas em madeira esculpida exibiam os nomes
daquelas extraordinárias personagens: Sabrab, que
era o chefe, Oriol e Oviur. O semblante de todos
mostrava-se grave, mas levemente suavizado pela minha
presença.
Sente-se!
, convidou Sabrab, evoluindo a mão num gesto
elíptico sobre a mesa.
Puxei da cadeira
de pinho claro, sentei-me e fiquei a olhá-los
vagamente, concentrada no barulho dos automóveis e
dos pássaros para além janela.
Diga!
Diga, então!- começou o chefe, denotando
ligeira ansiedade. Não temos tempo a perder.
Diga-nos tudo o que sabe sobre a realidade!
Fitei-os com
algum espanto.
Como
sabem o que eu sei?- perguntei, simplesmente.
Ainda se fosse noutro dia! Se fosse ontem, por
exemplo, algo lhes poderia adiantar sobre o assunto.
Hoje, contudo, era completamente impossível dar
satisfação a semelhante pedido!
Baixando a
cabeça, distraí-me com o pensamento de que seria
interessante pousar a mão esquerda sobre a mesa,
esticar o braço direito num gesto perfeito, trazer a
caneta colocada adiante, e aproveitar para desenhar
calmamente algumas letras sobre o papel. Repeti,
quase num murmúrio, erguendo a cabeça:
Como
sabem o que eu sei?
Temos as
nossas fontes de informação - lançou Oviur
com desprendimento.
Instintivamente
desviei o olhar para a janela, onde o azul pacífico
e belo se deixava, por vezes, manchar de brancas
nuvens ou de traços negros que se projectavam de um
lado para o outro soltando pius.
Lamento,
mas nada tenho para vos dizer - confessei. Na
verdade gostaria de ser útil, e até apreciava estar
ali naquele instante, desfrutando da calma e da luz
difusa que as quatro paredes emanavam. Sentia a
tranquilidade implícita nos objectos que preenchiam
a sala: a mesa que, silenciosa, se erguia, as
cadeiras que, estáticas, se desenhavam no ar em
três seguras dimensões. De fora, ouvia o som
simultâneo dos pássaros e dos aviões - o restolhar
de asas e de motores Diesel -, do súbito guinchar de
um autocarro numa travagem junto à paragem.
Compreendemos
a sua hesitação em abordar um assunto de tamanha
importância. Mas em nós pode confiar -
adiantou Oriol, inclinando-se na cadeira. Como
sabe, pertencemos à Comissão para a Realidade, um
Departamento Governamental especialmente criado para
investigar a Realidade.
Toda a
nossa actividade é altamente sigilosa-
continuou Oviur, completando o pensamento do
companheiro. Sabe... os nossos inquéritos
sobre o Real, as experiências sobre o que se oculta
por detrás desta Aparência de Realidade em que
vivemos, as nossas Teorias Secretas...
Tudo o que
nos contar ficará inteiramente protegido pela Lei do
Sigilo sobre a Realidade - concluiu Sabrab com
a serenidade própria de um entardecer de Verão.
Sim.
- aceitei, sem nada acrescentar. Apetecia-me
prender o momento, sem perturbar, sem soltar
movimentos que desequilibrassem a paisagem de sala
rodeada de armários vazios e poeirentos, sulcada de
papéis espalhados cuidadosamente pelo chão.
Desejava guardar o silêncio barulhento da paisagem.
Na outra ponta
da extensa mesa de reuniões, os três vultos
baixaram a voz e começaram a trocar ideias entre si.
Ouvia por vezes o sublinhar de um lápis sobre o
papel. Interrompiam então a conversa, para logo de
seguida retomarem a discussão de sábias teorias
sobre a vida e sobre Deus, buscando essa explicação
que o Homem ignora e finge desdenhar, contentando-se
com ódios aparentes.
Lamento
muito!- repeti. E todos se voltaram,
expectantes. Gostaria de vos auxiliar na busca
da realidade, da verdade última, do que existe para
além do que é visível e palpável. Gostaria pelo
menos de sentir revolta ou encantamento. Porém, hoje
o mundo e a vida coincidem consigo mesmos e nada mais
vejo no céu que o mero azul infinito, levemente
nublado. Nada mais vejo nos pássaros que meros
traços negros, projectando-se de um lado para o
outro da janela. Possivelmente, se me erguer e me
aproximar do vidro, não conseguirei ver nas flores
mais do que simples flores, na relva mais do que
simples relva, nos edifícios que me rodeiam mais do
que simples edifícios...
Mas
tivemos informação de que possui uma especial
ligação com a realidade, dados importantes para a
nossa pesquisa... - disse o chefe, sem
desapontamento, como que desvendando a premissa de
que partira, mas admitindo que a mesma pudesse estar
errada.
Acontece-me,
sim... - concordei. Mas não hoje, que a
ligação com a realidade me foi cortada, o fio
despedaçado, os altifalantes emudecidos...
Interessante! - considerou Oviur, tomando
notas.
Talvez
seja o sono que me tolhe e me impede a necessária
ligação com o céu e a terra! - tentei
justificar-me. Era possível que tudo aquilo não
passasse de um sonho embalado pelo vento uivante que
despenteava as árvores do parque e me envolvia em
cobertores macios e leves numa noite fresca de
Verão.
É
estranho, mas é verdade- continuei. Não era
verdade que o sonho fosse sonho (isso, não saberia
determiná-lo), mas sim que houvera vento buliçoso
numa noite de verão. E era também verdade que as
sombras fantasmagóricas de árvores revoltadas se
haviam desenhado nas paredes, nas varandas e nas
janelas dos prédios, e que de manhã, cessada a
dança infernal, o sol se erguera, renascendo o dia e
a relva, e as árvores, e as flores, como se o
demónio que as possuíra durante a noite houvesse
partido e cada ser tornasse à sua inocente vida.
Sobre cada folha humedecida brilhava, com ingénua
suavidade, uma lágrima de orvalho. O céu tornava-se
suave, e mesmo as pedras da calçada, os muros, as
estradas, as próprias paragens dos autocarros
renasciam, férteis de energia, sob os primeiros
raios de sol.
Podemos,
então, contar com a sua presença noutro dia?!
- interrogou-exclamou Sabrab.
Com todo
o prazer - murmurei, levantando-me sem ruído,
os gestos geometricamente desenhados de modo a não
perturbar a tranquilidade das partículas luminosas
que pairavam ao centro da sala.
Percorridos
intermináveis corredores, volto a encontrar-me na
rua. Diz o relógio que são onze e meia da manhã,
pelo que, a ser verdade (e tudo não se tratar de um
sonho), o céu que sobre mim se estende é ainda
jovem e esperançoso de vida. Terá assistido aos
meus passos confiantes, na calçada, ao meu olhar,
pisco de sono, a semicerrar-se perante um autocarro,
aos meus risos, às minhas falas. E, porém, não
terá sorrido de desdém porque, a ser verdade (e
tudo não se tratar de um sonho) também eu renasci
pelas sete e meia da manhã, os cabelos revoltos, as
faces coradas, os olhos ensonados. Renascemos ao
mesmo tempo - a manhã e eu - e por isso
provavelmente não estranho as suas árvores, o seu
céu, as suas flores. Talvez por isso eu não sinta a
tal revolta ou encantamento que auxiliariam a
Comissão para a Busca da Realidade... Como camaradas
da mesma idade, ciosos de um botão de esperança que
o tempo florescerá, fará brilhar em nós e mais
tarde murchar, o dia e eu caminhamos para a noite a
um mesmo passo, braço no braço, esperando a
possessão demoníaca do anoitecer.
Sorrio. Está,
afinal, desvendado o mistério das flores que são
apenas flores, da relva que é apenas relva, dos
edifícios que são apenas edifícios... ou não.
Pois se eles são apenas aquilo, eu sou apenas isto,
uma criatura ensonada, fechada num mundo
pré-determinado e monótono a que não pode
chamar-se vida.
Portanto, se
isto não é vida, é sonho, ou sono, ou irrealidade
limitada... e lá fora o vento uivante despenteia as
árvores do jardim...