CONTOS DE

ILONA BASTOS

 

CRÓNICAS E CONTOS

.

A COMISSÃO PARA A REALIDADE

sem revolta nem encantamento

.

.

Elaine

....... Conduzida à sala de paredes brancas e luminosas, aguardava-me do outro extremo da mesa de reuniões um estranho grupo composto por três homens. Aparentavam o aspecto bizarro que eu não poderia ter deixado de antecipar: o do meio - que me pareceu hierarquicamente superior aos outros - exibia longas barbas negras e cabelo comprido, atravessado no topo por uma larga e reluzente careca; o da direita ostentava uma esplêndida cabeleira loira, encaracolada; e o da esquerda era completamente ruivo, numa tonalidade eufórica, quase irreal. Em frente a cada um deles, solenes placas em madeira esculpida exibiam os nomes daquelas extraordinárias personagens: Sabrab, que era o chefe, Oriol e Oviur. O semblante de todos mostrava-se grave, mas levemente suavizado pela minha presença.

“ Sente-se! “, convidou Sabrab, evoluindo a mão num gesto elíptico sobre a mesa.

Puxei da cadeira de pinho claro, sentei-me e fiquei a olhá-los vagamente, concentrada no barulho dos automóveis e dos pássaros para além janela.

“ Diga! Diga, então!”- começou o chefe, denotando ligeira ansiedade. “ Não temos tempo a perder. Diga-nos tudo o que sabe sobre a realidade!”

Fitei-os com algum espanto.

“ Como sabem o que eu sei?”- perguntei, simplesmente. Ainda se fosse noutro dia! Se fosse ontem, por exemplo, algo lhes poderia adiantar sobre o assunto. Hoje, contudo, era completamente impossível dar satisfação a semelhante pedido!

Baixando a cabeça, distraí-me com o pensamento de que seria interessante pousar a mão esquerda sobre a mesa, esticar o braço direito num gesto perfeito, trazer a caneta colocada adiante, e aproveitar para desenhar calmamente algumas letras sobre o papel. Repeti, quase num murmúrio, erguendo a cabeça:

“ Como sabem o que eu sei?”

“ Temos as nossas fontes de informação ”- lançou Oviur com desprendimento.

Instintivamente desviei o olhar para a janela, onde o azul pacífico e belo se deixava, por vezes, manchar de brancas nuvens ou de traços negros que se projectavam de um lado para o outro soltando pius.

“ Lamento, mas nada tenho para vos dizer” - confessei. Na verdade gostaria de ser útil, e até apreciava estar ali naquele instante, desfrutando da calma e da luz difusa que as quatro paredes emanavam. Sentia a tranquilidade implícita nos objectos que preenchiam a sala: a mesa que, silenciosa, se erguia, as cadeiras que, estáticas, se desenhavam no ar em três seguras dimensões. De fora, ouvia o som simultâneo dos pássaros e dos aviões - o restolhar de asas e de motores Diesel -, do súbito guinchar de um autocarro numa travagem  junto à paragem.

“Compreendemos a sua hesitação em abordar um assunto de tamanha importância. Mas em nós pode confiar ”- adiantou Oriol, inclinando-se na cadeira. “ Como sabe, pertencemos à Comissão para a Realidade, um Departamento Governamental especialmente criado para investigar a Realidade.”

“Toda a nossa actividade é altamente sigilosa”- continuou Oviur, completando o pensamento do companheiro. “Sabe... os nossos inquéritos sobre o Real, as experiências sobre o que se oculta por detrás desta Aparência de Realidade em que vivemos, as nossas Teorias Secretas...”

“Tudo o que nos contar ficará inteiramente protegido pela Lei do Sigilo sobre a Realidade ”- concluiu Sabrab com a serenidade própria de um entardecer de Verão.

“ Sim. ”- aceitei, sem nada acrescentar. Apetecia-me prender o momento, sem perturbar, sem soltar movimentos que desequilibrassem a paisagem de sala rodeada de armários vazios e poeirentos, sulcada de papéis espalhados cuidadosamente pelo chão. Desejava guardar o silêncio barulhento da paisagem.

Na outra ponta da extensa mesa de reuniões, os três vultos baixaram a voz e começaram a trocar ideias entre si. Ouvia por vezes o sublinhar de um lápis sobre o papel. Interrompiam então a conversa, para logo de seguida retomarem a discussão de sábias teorias sobre a vida e sobre Deus, buscando essa explicação que o Homem ignora e finge desdenhar, contentando-se com ódios aparentes.

“Lamento muito!”- repeti. E todos se voltaram, expectantes. “Gostaria de vos auxiliar na busca da realidade, da verdade última, do que existe para além do que é visível e palpável. Gostaria pelo menos de sentir revolta ou encantamento. Porém, hoje o mundo e a vida coincidem consigo mesmos e nada mais vejo no céu que o mero azul infinito, levemente nublado. Nada mais vejo nos pássaros que meros traços negros, projectando-se de um lado para o outro da janela. Possivelmente, se me erguer e me aproximar do vidro, não conseguirei ver nas flores mais do que simples flores, na relva mais do que simples relva, nos edifícios que me rodeiam mais do que simples edifícios...”

“ Mas tivemos informação de que possui uma especial ligação com a realidade, dados importantes para a nossa pesquisa...” - disse o chefe, sem desapontamento, como que desvendando a premissa de que partira, mas admitindo que a mesma pudesse estar errada.

“Acontece-me, sim...” - concordei. “ Mas não hoje, que a ligação com a realidade me foi cortada, o fio despedaçado, os altifalantes emudecidos...”

“ Interessante!” - considerou Oviur, tomando notas.

“ Talvez seja o sono que me tolhe e me impede a necessária ligação com o céu e a terra! - tentei justificar-me. Era possível que tudo aquilo não passasse de um sonho embalado pelo vento uivante que despenteava as árvores do parque e me envolvia em cobertores macios e leves numa noite fresca de Verão.”

“É estranho, mas é verdade”- continuei. Não era verdade que o sonho fosse sonho (isso, não saberia determiná-lo), mas sim que houvera vento buliçoso numa noite de verão. E era também verdade que as sombras fantasmagóricas de árvores revoltadas se haviam desenhado nas paredes, nas varandas e nas janelas dos prédios, e que de manhã, cessada a dança infernal, o sol se erguera, renascendo o dia e a relva, e as árvores, e as flores, como se o demónio que as possuíra durante a noite houvesse partido e cada ser tornasse à sua inocente vida. Sobre cada folha humedecida brilhava, com ingénua suavidade, uma lágrima de orvalho. O céu tornava-se suave, e mesmo as pedras da calçada, os muros, as estradas, as próprias paragens dos autocarros renasciam, férteis de energia, sob os primeiros raios de sol.

“ Podemos, então, contar com a sua presença noutro dia?!” - interrogou-exclamou Sabrab.

“ Com todo o prazer” - murmurei, levantando-me sem ruído, os gestos geometricamente desenhados de modo a não perturbar a tranquilidade das partículas luminosas que pairavam ao centro da sala.

Percorridos intermináveis corredores, volto a encontrar-me na rua. Diz o relógio que são onze e meia da manhã, pelo que, a ser verdade (e tudo não se tratar de um sonho), o céu que sobre mim se estende é ainda jovem e esperançoso de vida. Terá assistido aos meus passos confiantes, na calçada, ao meu olhar, pisco de sono, a semicerrar-se perante um autocarro, aos meus risos, às minhas falas. E, porém, não terá sorrido de desdém porque, a ser verdade (e tudo não se tratar de um sonho) também eu renasci pelas sete e meia da manhã, os cabelos revoltos, as faces coradas, os olhos ensonados. Renascemos ao mesmo tempo - a manhã e eu - e por isso provavelmente não estranho as suas árvores, o seu céu, as suas flores. Talvez por isso eu não sinta a tal revolta ou encantamento que auxiliariam a Comissão para a Busca da Realidade... Como camaradas da mesma idade, ciosos de um botão de esperança que o tempo florescerá, fará brilhar em nós e mais tarde murchar, o dia e eu caminhamos para a noite a um mesmo passo, braço no braço, esperando a possessão demoníaca do anoitecer.

Sorrio. Está, afinal, desvendado o mistério das flores que são apenas flores, da relva que é apenas relva, dos edifícios que são apenas edifícios... ou não. Pois se eles são apenas aquilo, eu sou apenas isto, uma criatura ensonada, fechada num mundo pré-determinado e monótono a que não pode chamar-se vida.

Portanto, se isto não é vida, é sonho, ou sono, ou irrealidade limitada... e lá fora o vento uivante despenteia as árvores do jardim...

.

..

Home.... I ...Dados Biográficos... l ...Poemas... l ....Hai-kai.... l ...Contacto... l .. Crónicas

© 2004 - Ilona Bastos - Todos os direitos reservados
Pintura de Goya

Mais recente actualização: 7 de Novembro de 2004