. Fauna &
Flora: NO AR FRESCO DA MANHÃ

..Pêssego
.
Por volta das oito
horas, a dona subiu a persiana, abriu a porta da janela
de sacada e permitiu à cadela preta, sua companheira de
quinze anos, que saboreasse o ar fresco da manhã.
Depois, dirigiu-se à cozinha para confeccionar o
pequeno-almoço. E a cadela preta, no seu andar difícil
de cãozito doente, acompanhou os passos, também não
muito ágeis, da idosa senhora.
Não se sabe ao certo quando aconteceu - se quando, do
frigorífico, a dona retirava o pacote do leite ou a
manteiga, se enquanto cortava o pão e o colocava na
torradeira, ou, ainda, se no momento de abrir a gaveta e
escolher os talheres... - a verdade é que a cadelinha
preta regressou à sala, para sentir um pouco mais da
brisa matinal.
Como fazia, havia tantos anos, ergueu o focinho por entre
as traves da janela e aspirou os mil aromas que lhe
chegavam da vizinhança: da figueira farfalhuda,
carregada de figos, pequenos mas maduros; das flores
silvestres que, em coloridos tufos, guarneciam o jardim
do largo; da família de gatos que se alojara no casebre
abandonado; do cocker spaniel do sexto andar, também ele
a farejar a chegada do Outono e a sentir a sua
presença...
A cadela preta semicerrou os olhos, que já tão pouco
viam, e deixou-se embalar pela frescura da manhã - tão
agradável depois de uma infinidade de dias e de noites
em que um calor insuportável a incomodara, a impedira de
dormir, de comer, e chegara mesmo a fazê-la sentir-se
doente. O seu jovem dono vira-se obrigado a
transportá-la ao hospital veterinário, onde a
acompanhara durante vários dias de internamento e
tratamento intensivo.
Agora, sentia-se bem melhor, a cadelinha! Neste preciso
momento, em que o odor das torradinhas acabadas de barrar
lhe chegava às narinas, quase pairava de prazer e
expectativa pelo delicioso bocado que lhe estava
reservado. Suspirou, deleitada!
A dona trazia a bandeja, com dificuldade - pois os seus
oitenta anos e inúmeros problemas de saúde tolhiam-lhe
os movimentos. No prato, colocara uma pequena fatia de
pão torrado, destinada à sua menina de quatro patas. E,
pelo corredor, já lhe chamava o nome, dizendo:
"Queres uma torradinha, minha querida?! Queres uma
torradinha?!"
Entrou na sala, ainda a tempo de ver a sua cadelinha
preta, de costas, à janela, a abanar levemente a cauda,
a avançar em pequenos passos - os olhos fechados, o
nariz curioso - e entregar-se, assim, ao ar fresco da
manhã.
Um soluço formou-se no mais fundo das suas entranhas,
subiu violentamente e explodiu, alto, incontrolável,
numa cascata de lágrimas e de dor.
Alertado pelo grito da mãe, logo o filho acorreu, a
ampará-la. Depois, precipitou-se, escadas abaixo, até
ao passeio, onde se debruçou sobre o corpo, ali jazente,
da pequena cadela preta. E mais uma vez chorou,
compreendendo que tinha acabado, finalmente, o sofrimento
que, durante as últimas semanas, atormentara aquela
inocente e amada criatura.
Com mágoa imensa, estreitou nos seus braços, pela
última vez, a cadelinha que tanta felicidade trouxera à
sua família.
Lisboa, 19-09-2006
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