O romancista.
Parou,
subitamente, e ponderou, por momentos, que talvez nunca
conseguisse escrever o romance. Faltavam-lhe, porventura,
a paciência, a aplicação e a perseverança
necessárias!
Nunca esta ideia lhe ocorrera anteriormente. Na verdade,
começara por julgar que o problema residia na cadeira,
onde não lhe era possível sentar-se, a escrever, por
mais de cinco minutos.
Tal convicção levara-o, em certa ocasião, a acalmar-se
e observar o assento com extremo cuidado. Analisara-lhe a
estrutura, a matéria prima, o design. Apalpara
conscienciosamente a almofada que o cobria, no que fora
apanhado em flagrante pela empregada, como sempre
sorrateira a percorrer as divisões da casa em passinhos
silenciosos.
Ilibada a cadeira, voltara o olhar acusador para a
desarrumação que cobria a secretária, para os montes
de livros e papeis, em caos, que o cercavam. Como queriam
que escrevesse no meio daquela confusão?! Nem conseguia
ouvir os próprios pensamentos, cercado de tanta
retórica, tanto ensaio, tanta lei, tanto apontamento
desgarrado! Aquela escrita gritante afugentara até uma
ideia fabulosa que lhe surgira no dia anterior, após o
café.
Convencera-se, durante algum tempo, de que tomando uma
chávena suficientemente grande de café suficientemente
forte conseguiria escrever um romance magnífico, essa
obra-prima de suspense e emoção de que falava aos
amigos havia anos -- o aguardado best seller que em tudo
suplantaria as historietas banais, tão em voga, que a
televisão e os jornais não se cansavam de elogiar.
Evidentemente, o seu romance teria um alcance
absolutamente fora de série: à semelhança dos
clássicos, narraria uma história universal,
susceptível de tocar todos os homens e mulheres,
independentemente da nacionalidade, raça ou credo;
original, jamais se apagaria da memória de quem o lesse;
intenso, inteligente e subtil, prenderia a atenção do
leitor desde as primeiras até às últimas palavras;
profundo e filosófico, traçaria uma nova concepção do
mundo; épico, inspiraria feitos grandiosos; complexo,
porém, linear, reuniria o aplauso unânime dos
intelectuais; enfim, valer-lhe-ia o Nobel...
Nunca tivera dúvidas da sua elevada capacidade e do seu
talento excepcional. E com o café, então, as ideias que
lhe atravessavam o cérebro tornavam-se verdadeiramente
geniais! Só havia o problema de se dissiparem com tanta
rapidez. Ao ponto de não conseguir passá-las ao papel.
Quando chegava a garatujar algumas palavras e as relia,
constatava, estarrecido, que nelas não encontrava sequer
uma sombra da ideia magnífica que lhes dera origem. E
então, enervado, atirava com a caneta, amarfanhava o
papel, levantava-se da cadeira, deambulando, desesperado,
pelo escritório. Daí, naturalmente, que a primeira
suspeita tivesse recaído sobre a cadeira... não é
verdade?
Mas, pensando bem... não seria, antes, uma deficiência
da caneta? Como não se lembrara disso? Sempre suspeitara
do aparo, um tudo nada grosso em demasia, de uma maciez
excessiva, que lhe tornava a letra grande, infantil,
pouco profunda... e o gesto da escrita extremamente
lento. Com certeza, encontrava-se aí o motivo por que,
após tantos anos de tentativas infrutíferas, não
conseguira ainda iniciar o seu romance!
Entusiasmado com esta hipótese, que lhe abria novas
perspectivas, decidiu explorar-lhe as potencialidades:
abriu a segunda gaveta da secretária e de lá retirou,
em transportes sucessivos, dezenas de canetas e
esferográficas, que largou sobre o tampo, em euforia.
Passou, depois, a experimentá-las, uma a uma,
metódicamente, desenhando elipses contínuas que
percorriam o papel da esquerda para a direita, do topo
para a base. E assim preencheu folhas e folhas do seu
bloco especial, durante a tarde toda, indiferente à
presença da empregada, que o espreitava, encostada à
porta, silenciosa, atenta, respeitosa, orgulhosa do seu
patrão, o romancista.
Lisboa, 10 de Março de 2006
|