O duche.
Basta
um toque na torneira da água quente para que o duche se
transforme numa fonte de delícias! O jorro de água
morna, à temperatura ideal, açoita-me os ombros com
volúpia, desce-me pelas costas e desfaz generosamente
aquela dor, acima dos rins, que me dificulta o voltear
entre os lençóis, pela manhã, ao acordar. A água é
pródiga em carícias e devolve-me a juventude: ora me
encharca o cabelo, que se alisa languidamente; ora me
desliza sobre a pele, decidida, independente,
espraiando-se afoitamente pelo peito, pelos braços, pela
barriga; ora se rebola, pelas pernas, até aos pés, que
chapinham, ondeando a tumultuosa maré que percorre a
banheira; ora se liberta em gotículas mil, que de mim
projecto, esfuziante. Sou água, sou cascata, sou rio,
sou mar, sou oceano, sou vida!
E, a partir do momento em que renasço, logo o espírito
se põe a voar, em pensamentos iluminados. Como a água,
que não pára de cair, dúvidas me atingem,
verbalizando-se em frases que murmuro, enleada:
Quando voltará o tempo a estender-se a nossos
pés, como uma planície verdejante?; outras vezes,
é a resposta que me surge, tal como a flor que se abre,
expandindo suas pétalas preciosas ante meu espírito
deslumbrado: De repente dou-me conta de que, neste
pensar não ser, sou tão intrinsecamente eu!;
outras vezes, ainda, é uma voz, no interior de mim, que
sussurra segredos: Escuta-me! Só sou,
verdadeiramente, no Outono
Por mil rios e ribeiros desce a torrente que me lava, me
limpa, me alimenta de novos pensamentos.
A água é rica e sábia: viajou pelos céus, lançou-se
no mar, acompanhou os peixes, estendeu-se na areia, voou,
regou, alimentou, dominou, serviu, e tudo viu, tudo
aprendeu, ao longo dos tempos. Por isso, as suas gotas me
incendeiam o espírito, mil ideias me transmitindo, mil
imagens me mostrando, mil sentidos me tocando
Por isso mesmo, esta profusão de ideias, quando estou
debaixo do chuveiro, esta sensação de bem-estar total
que me inunda o corpo e a alma
Agora, chegou o momento de agir. Estendo a mão, rodo as
torneiras: a da água quente, primeiro; em seguida, a da
água fria. Abro o cortinado. Passo uma perna e depois
outra. Alcanço o tapete turco. Enrolo-me na toalha de
banho, cubro os cabelos e calço os chinelos.
Terminado o duche, estou pronta para a vida!
Lisboa, 28 de Novembro de 2005
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