CONTOS DE

ILONA BASTOS

 

CRÓNICAS E CONTOS

O duche

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Basta um toque na torneira da água quente para que o duche se transforme numa fonte de delícias! O jorro de água morna, à temperatura ideal, açoita-me os ombros com volúpia, desce-me pelas costas e desfaz generosamente aquela dor, acima dos rins, que me dificulta o voltear entre os lençóis, pela manhã, ao acordar. A água é pródiga em carícias e devolve-me a juventude: ora me encharca o cabelo, que se alisa languidamente; ora me desliza sobre a pele, decidida, independente, espraiando-se afoitamente pelo peito, pelos braços, pela barriga; ora se rebola, pelas pernas, até aos pés, que chapinham, ondeando a tumultuosa maré que percorre a banheira; ora se liberta em gotículas mil, que de mim projecto, esfuziante. Sou água, sou cascata, sou rio, sou mar, sou oceano, sou vida!
E, a partir do momento em que renasço, logo o espírito se põe a voar, em pensamentos iluminados. Como a água, que não pára de cair, dúvidas me atingem, verbalizando-se em frases que murmuro, enleada: “Quando voltará o tempo a estender-se a nossos pés, como uma planície verdejante?”; outras vezes, é a resposta que me surge, tal como a flor que se abre, expandindo suas pétalas preciosas ante meu espírito deslumbrado: “De repente dou-me conta de que, neste pensar não ser, sou tão intrinsecamente eu!”; outras vezes, ainda, é uma voz, no interior de mim, que sussurra segredos: “Escuta-me! Só sou, verdadeiramente, no Outono…”
Por mil rios e ribeiros desce a torrente que me lava, me limpa, me alimenta de novos pensamentos.
A água é rica e sábia: viajou pelos céus, lançou-se no mar, acompanhou os peixes, estendeu-se na areia, voou, regou, alimentou, dominou, serviu, e tudo viu, tudo aprendeu, ao longo dos tempos. Por isso, as suas gotas me incendeiam o espírito, mil ideias me transmitindo, mil imagens me mostrando, mil sentidos me tocando…
Por isso mesmo, esta profusão de ideias, quando estou debaixo do chuveiro, esta sensação de bem-estar total que me inunda o corpo e a alma…

Agora, chegou o momento de agir. Estendo a mão, rodo as torneiras: a da água quente, primeiro; em seguida, a da água fria. Abro o cortinado. Passo uma perna e depois outra. Alcanço o tapete turco. Enrolo-me na toalha de banho, cubro os cabelos e calço os chinelos.
Terminado o duche, estou pronta para a vida!


Lisboa, 28 de Novembro de 2005


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Pintura de Goya

Mais recente actualização: 4 de Dezembro de 2005