Uma crónica de Natal.
São
felizes as recordações que guardo dos Natais da minha
infância.
Reconheço que algumas das memórias possam ter sido
douradas pelo tempo, mas sei, também, que se ao pensar
nos Natais de então os sinto como felizes, é porque
essas festas antigas algumas sementes de felicidade em
mim depositaram, fazendo germinar as imagens que agora
contemplo.
Lembro-me, assim, de casas quentes e cheias de crianças
risonhas, e de festas bem iluminadas por lustres e
candelabros, cuja claridade tornava brilhantes as
loiças, os copos de cristal, os talheres, o rendilhado
das toalhas de linho, as comidas e doces tradicionais, as
imagens do Presépio e os enfeites natalícios,
revestindo tudo e todos de uma película de luxo e
encanto.
O interessante é que eu não gosto particularmente do
luxo, ou do que habitualmente se considera como tal. Mas
o luxo da luz, do brilho, da transparência dos vidros e
dos cristais associa-se, no meu espírito e no meu
coração, ao calor humano, ao carinho, ao convívio, às
risadas e correrias, aos momentos de felicidade!
De estranho, ficou-me, porém, durante longos anos, o
mistério de as minhas tias avós traves mestras
da família , se encontrarem ausentes dessas festas
da consoada ou do dia de Natal, as quais eram sempre
realizadas nas casas dos familiares mais jovens (que
eram, nessa época, os meus pais, os meus tios e uns
primos da mesma idade). Por qualquer motivo que eu não
chegava a compreender, quando se falava em convidar as
tias para estas reuniões festivas, havia um adulto que
adoptava um semblante grave, baixava a voz, e respondia
que as tias preferiam passar o Natal tranquilamente, na
sua casa.
É claro que as tias eram muito idosas, sabíamo-lo. A
doce tia Amélia, aproximava-se dos noventa anos e a
querida tia Helena não estaria, também, muito longe
dessa idade. A tia Leonor, com os seus belos olhos azuis,
tinha já dificuldade em andar. E a adorada tia Ana, não
era nenhuma jovem
Mas isso não as impedia de
receber a família, todos os domingos, com um lanche
apetitoso! Na verdade, se pensássemos bem, as tias
festejavam todo o ano, com excepção do Natal.
Só mais velha vim a compreender o que se passava com a
família do meu pai e o Natal: a minha bisavó, mãe da
minha avó e das minhas tias, falecera no Natal e, desde
então, essa época passara a trazer a todos a
recordação dessa severa perda, reavivando o desgosto
ano após ano.
Por isso a contenção do meu pai, sempre tão animoso e
entusiasta, que no Natal se mostrava mais recatado,
embora proporcionando-nos, à nossa mãe e a nós, suas
filhas, toda a alegria da época festiva.
Rodeada de carinho e alegria, e embora consciente de que
também no Natal se sofrem desgostos, quando a
festividade se aproximava eu afastava de mim todos os
pensamentos melancólicos. Concentrava-me no júbilo do
nascimento de Jesus, na felicidade de reencontrar a
família e receber presentes, no luxo das festas e das
iluminações natalícias.
Mais tarde, deixei-me imbuir da euforia de enviar
cartões e oferecer lembranças, satisfeita por, durante
essa época do ano, poder reavivar velhas amizades,
obsequiar pessoas por quem sentia gratidão e respeito, e
até mesmo corresponder a pequenos favores ou gentilezas
que, confusamente, recebera e não soubera retribuir de
outro modo.
Os cartões, então, eram receptáculos dos meus bons
desejos para a humanidade. Escrevia-os inocentes,
ingénuos, exaustivos, enumerando as benesses que sobre o
destinatário desejava ver recair. E, ao endereçar e
encerrar cada envelope, sabia que o amor depositado em
cada missiva não poderia deixar de beneficiar a vida de
quem a recebesse. Estava certa de que todos notariam a
escolha criteriosa da estampa, o cuidado com que
desenhara as letras, a suavidade da caligrafia, a
genuinidade dos votos expressos, e sentir-se-iam felizes.
Outra circunstância, não irrelevante, consistia no
facto de os votos se destinarem a cobrir, não apenas o
período natalício, mas todo o novo ano que logo se
iniciaria.
Por outras palavras, ao escrever e enviar um cartão de
Natal (e eu fazia-os às dezenas!) estava a ofertar ao
destinatário todo um ano repleto de saúde, alegria,
felicidade, amor e prosperidade!
Aconteceu, no entanto, que, nos primeiros dias de Janeiro
de há uns anos atrás, uma tristíssima ocorrência
alterou por completo a minha visão do Natal. O meu tio
Alberto, irmão mais novo do meu pai, que estava longe,
faleceu. O choque foi imenso! O meu pai telefonara-lhe
alguns dias antes, e ele parecia bem. Como podia ter-nos
deixado tão subitamente?!
Embora o tio Alberto tivesse vivido muitos anos separado
de nós, os contactos com ele eram muito frequentes, e
sentíamo-lo como alguém extremamente chegado.
Contribuía para essa intimidade e para essa estima a sua
enorme semelhança com o meu pai, quer na fisionomia,
quer nos gestos e até na voz. E, sendo o irmão mais
jovem, nunca nos passara pela cabeça que pudesse partir
assim!
Mas o que me impressionou especialmente foi o
aperceber-me de que ele adoecera exactamente durante o
período que antecedera o Natal, ou seja, quando, com
tanto fervor e amor, eu lhe escrevera um cartãozinho,
expressando os sinceros desejos de muita saúde, alegria,
felicidade
E, quando, na noite de Natal, erguendo os copos de vinho,
os entrechocávamos, sorridentes, brindando aos presentes
e aos ausentes, a todos desejando muita saúde e
felicidade, ele era hospitalizado.
Afinal, os nossos votos nada significavam! Os meus
desejos, os meus apelos, o meu amor de nada valiam!
E, no ano que se seguiu, não consegui escrever cartões
de Natal. A compra dos presentes tornou-se um fardo. A
alegria festiva, anunciada na televisão e na rádio,
pareceu-me artificial o Natal perdera o seu
encanto!
Interrogava-me: poderemos algum dia reencontrar a alegria
e festejar o Natal, depois de perdermos um ente querido
durante esta época?
O tempo, que mitiga as dores e nos devolve, aos poucos, a
serenidade, acabou por me trazer a resposta no Natal
seguinte:
O Natal tem que ver com o nascimento de Jesus. Tem que
ver com o surgimento de uma nova vida, cheia de energia,
de amor e de esperança! E, assim, olhando as crianças,
encontramos nos seus rostinhos, nos seus sonhos, nas suas
palavras, nos seus olhares, nos seus gestos, o espírito
do Natal. E, por eles, escondemos os nossos desgostos,
afastamos as nossas mágoas, enfeitamos a árvore de
Natal, montamos o Presépio, estendemos a toalha de linho
e de renda sobre a mesa, colocamos as loiças de festa,
distribuímos os copos de cristal que só deixam o
armário uma vez por ano, utilizamos os talheres que
lavámos e polimos até brilharem, preparamos as receitas
antigas de peru e doçaria, fritamos os coscorões e as
fatias douradas, compramos o mais bonito bolo-rei que
conseguimos encontrar, e asseguramo-nos de que o menino
Jesus e o Pai Natal deixarão, nos sapatinhos das
crianças, os presentes tão desejados. Depois, aquecemos
a casa e, acendendo os candeeiros e os candelabros,
inundamo-la de luz. Convidamos a família. Ao recebermos,
à entrada, cada parente recém-chegado, sentimo-nos
felizes por tê-lo junto de nós. Falamos e damos
risadas, contentes, enquanto tomamos em nossos braços o
seu casaco, e por baixo disfarçamos o saco com os
presentes trazidos para as crianças.
As crianças, ah!, essas, correm de sala em sala,
risonhas, felizes, brincando com os primos, espreitando o
Presépio, observando as luzinhas do pinheiro decorado
com fios dourados, figurinhas de madeira e bolas
brilhantes.
Olhamos os meninos, agradecendo a Deus pela graça de os
ter trazido até nós, e com eles uma nova alegria, fé e
esperança! E em cada novo Natal lançamos, nas suas
mentes e nos seus corações pequeninos, as sementes que
mais tarde germinarão em recordações felizes dos
Natais das suas infâncias.
Lisboa, 4 de Dezembro de 2005
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