TELEVISÃO: O velho, a casa e a magnólia.
Atipicamente,
sento-me, na sala aquecida, só, ouvindo, da televisão,
a música Corcovado de Tom Jobim, transmitida
no canal Mezzo.
O cão aninha-se ao meu colo, dificultando-me a escrita,
mas dando-me pretexto para súbitos abraços, quando me
observa atentamente, ou cheira criteriosamente a minha
roupa, ou, ainda, dá uma lambidela doce nos meus dedos.
Agora, na televisão, uma Salsa festiva
prende, por momentos, o meu olhar.
Sei que não era isto que desejava escrever, quando me
levantei do sofá e fui, até ao quarto, buscar o
caderno
A casa do homem deita para uma paisagem desolada. Tal
como a vejo, parece-me uma espécie de ferro velho,
pejada de destroços a preto e branco, como se ali, em
frente da casa do homem, não houvesse mais cores além
destas.
Mas quando o homem surge à janela, o seu olhar
concentra-se na pequena árvore diante de si
mancha irrisória na paisagem destroçada e diz:
Olhe esta árvore. Observe-a bem. É uma magnólia, que
na Primavera se enche de flores brancas, centenas delas.
Já se conseguem ver os botões, repare
E nós reparamos nos botões, nos ramos finíssimos, na
árvore
e o resto da paisagem deixa de existir!
Fazendo zapping, acabei de invadir este programa, e penso
que o documentário já vai a meio.
Quem é o homem que vive diante da árvore? É oriental
(talvez chinês), velho, culto, e vai morar em Xangai
quando a sua casa for demolida.
Nada mais sei!
O homem diz que não dorme há dois dias, pois não tem o
que pensar. Os advogados chegaram a um acordo e ele
receberá uma indemnização. A casa será, finalmente,
deitada abaixo, como aconteceu com as outras da
vizinhança.
Cala-se por momentos, dando-me tempo para escrever.
A casa vai ser demolida e ele pensa no que será a sua
nova vida. Diz que os chineses distinguem mal os
conceitos de antes e depois.
Deixo-me ficar a olhar para os caixotes onde foram
guardados os bens deste homem. Sobre eles a sobrinha
coloca uma caixa de cartão, que destapa, mostrando um
bolo de aniversário. E ali, no centro do quarto
desfeito, dentro da casa condenada, perto da magnólia
que será abatida, cercada de destroços do bairro
antigo, a rapariga corta fatias de um bolo decorado, que
ambos comem, comemorando sem alegria.
Os caixotes são carregados pela escada abaixo, enquanto
o homem fuma um último cigarro. O olhar desgostoso.
Novamente à janela, conta que a magnólia costuma dar
quinhentas ou mil flores, na Primavera. Centenas, todas
brancas
Despede-se de cada aposento e acrescenta que é inútil
dizer au revoir, pois nunca mais voltará a
ver a casa.
A sobrinha não se cansa de repetir: Pobre velho! Pobre
velho!
Passeia-se de quarto em quarto, pega num saco, que
contém um quadro, e dá-lhe um pontapé. Observa um
pullover vermelho, sem mangas, pendurado num cabide.
Continua a fumar.
A sobrinha esclarece que ele completará em breve
sessenta anos.
Como, então, chamar-lhe velho?! Surpreendo-me.
Aproveitando-se da minha distracção, ele deixa a casa
com rapidez. Afasta-se da magnólia. Abre a porta grande,
pesada, que transpõe. Fecha-a com cuidado. Volta-se para
trás por uns segundos apenas, fita o portão. Não deve
ser difícil, mesmo para um chinês, perceber: entre o
antes e o depois ergue-se agora
esta porta, que não voltará a ser transposta.
O homem começa a afastar-se, e, daqui, do meu sofá
tranquilo, observo-o nos primeiros passos da sua nova
vida
Lisboa, 27 de Novembro de 2005
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